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quarta-feira, 31 de maio de 2017

DEAR WHITE PEOPLE LIBERTA A ARTE NEGRA DE REFERÊNCIAS BRANCAS

RECENTEMENTE, PARTICIPEI DE um evento com formato que gostaria de ver cada vez mais difundido entre artistas em geral e, principalmente, artistas negros/as, o Polifônica Negra, em Belo Horizonte. Experimentos cênicos, debates, provocações, conversas, fragmentos de trabalho
RECENTEMENTE, PARTICIPEI DE um evento com formato que gostaria de ver cada vez mais difundido entre artistas em geral e, principalmente, artistas negros/as, o Polifônica Negra, em Belo Horizonte.
Experimentos cênicos, debates, provocações, conversas, fragmentos de trabalhos em construção, ocupação de espaços espalhados pela cidade e tamanho perfeito para que coubéssemos todos, no fim da noite, em uma imensa mesa de bar com mais conversas, debates, provocações, parcerias etc… Escapamos de um formato de evento que tem me incomodado cada vez mais, que é aquele que se pretende apenas laudatório e que, para mim, funciona mais como armadilha, prendendo o artista em sua zona de conforto, do que como gatilho de novas experiências, possibilidades, ideias e, sobretudo, crescimento e amadurecimento artísticos.
Já há no Brasil uma arte negra que se sustenta sem a necessidade de estar em diálogo com referências, temas e questionamentos não negros.
Um dos questionamentos levantados pelo filósofo Renato Nogueira foi até que ponto nós, artistas negros, estaríamos produzindo em reação a ou a partir da conversa com um cânone branco. A resposta da atriz Grace Passô, com a qual concordo, é que já há no Brasil uma arte negra com poética, estética e formatos próprios, que se sustenta sem a necessidade de estar em diálogo com referências, temas e questionamentos não negros. A arte se liberta quando isso acontece, e um dos maiores exemplos disso vem de uma das séries mais comentadas da temporada, Dear White People, da Netflix.

O exemplo é mais claro ainda para quem assistiu ao filme homônimo, de 2014, que lhe deu origem e que funcionava mais como um tipo de manual de educação racial para brancos, ficando aquém de suas possibilidades. A série abandonou essa linha, focando em mostrar os problemas e a hipocrisia enfrentados por alunos negros em uma universidade de ponta estadunidense, predominantemente branca e tida como pós-racial. O toque interessante fica por conta do reitor negro, que não posso deixar de comparar à figura do presidente Barack Obama em um país no qual parte da população acreditou que havia acabado com o racismo ao eleger um presidente negro.
Talvez, a partir desta ideia de pluralidade, também possamos nos livrar de uma outra que é bastante antiga e danosa: a da culpa coletiva.
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Foto: divulgação
O ponto de partida é uma festa blackface que aconteceu na sede da Revista Pastiche, comandada por alunos brancos, e denunciada no programa de rádio da personagem principal, Sam, uma jovem mestiça que apenas se percebeu negra quando não foi convidada para uma festa de brancos. A série tem 10 episódios, dedicados à abordagem dos pontos de vistas e das histórias de personagens diferentes. O que, por si só, já é uma grande contribuição à desconstrução de uma ideia de identidade única para os negros, como se todos devessem pensar e agir da mesma maneira. Talvez, a partir desta ideia de pluralidade, também possamos nos livrar de uma outra que é bastante antiga e danosa: a da culpa coletiva. É interessante perceber como, por exemplo, o racismo faz com que um crime cometido por um negro seja quase que invariavelmente colocado na conta de um grupo (“negros são violentos”, “negros são perigosos”), contribuindo para a construção e propagação de um estereótipo racista que tem efeitos, inclusive, na abordagem policial mais frequente, violenta e justiceira. Isso não acontece com os brancos. Os crimes cometidos pelos réus e investigados na Lava Jato, por exemplo, todos brancos, são tratados como falha de caráter humano, e não de um determinado grupo racial.
“Ser um negro despreocupado é um ato revolucionário.”
Resisto à vontade de comentar episódio por episódio, embora cada um deles tenha material suficiente para ganhar um artigo inteiro. De modo geral, a série é uma grande contribuição para trazer à tona assuntos que nem sempre são tratados fora da comunidade negra. Atenho-me, então, a dois deles; não por serem os mais importantes, mas porque possuem ligação direta com alguns episódios do nosso “racismo à brasileira”.
O primeiro deles é o episódio 5, dirigido por Barry Jenkins, o premiado diretor de Moonlight. Trata, sobretudo, de vulnerabilidade, através do personagem Reggie, um militante antirracista bastante ativo e consciente. Por isto, talvez, o mote do episódio seja “ser um negro despreocupado é um ato revolucionário”, e Reggie e seus amigos tentem passar um dia sem se preocupar com racismo.
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Foto: Adam Rose/Netflix
Na saída de uma sessão de cinema, a personagem Joelle diz uma das melhores frases da série, referindo-se ao diretor Tarantino: “Só porque deixou J. Lee Fox matar alguns racistas em Django acha que pode usar todos os estereótipos de negros existentes”. Aqui, do que se fala é do “branco bem intencionado”, que cito na coluna “É difícil fazer com que os “bem intencionados” entendam racismo”.
O branco bem intencionado, tido como aliado, volta a aparecer um pouco mais tarde em uma festa na casa de um amigo de Reggie. O amigo, branco, convida Reggie a fazer dupla com ele em um jogo de conhecimento gerais, que Reggie domina do princípio ao fim, não errando uma única pergunta e ainda tirando onda com a afirmação: “Mesmo este jogo sendo culturalmente viciado (não havia perguntas sobre cultura negra, apenas cultura branca, considerada “cultura geral”) eu estou vencendo, porque eu sei sobre a minha cultura e a cultura de vocês”. Não há nada mais verdadeiro, tanto lá como aqui, onde é preciso que exista uma lei – nem sempre respeitada – que obrigue a falar sobre cultura negra nas escolas, para que crianças negras possam ter algum ponto de referência positivo fora do cânone branco, muitas vezes racista.

Na mesma festa, provando que é quase impossível ser revolucionário através da despreocupação, Reggie chama a atenção do amigo branco para uma letra de rap racista tocada na festa, na qual é dita a palavra “nigger”. “Achei estranho me censurar”, responde o “aliado”, “pois você vem na minha casa, bebe da minha bebida e ainda me ataca?”. Ou seja: como Tarantino, ele também quer carta branca para ser racista de vez em quando, já que pode ser considerado um “aliado”. Ou ainda, por se considerar um aliado, amigo de negros, suas atitudes não podem ser consideradas racistas. Este tipo de “salvo-conduto” é bastante invocado, e é necessário se entender que conviver com negros, ter filhos negros, amigos negros e mesmo parceiros ou parceiras negros/as não imuniza ninguém contra o racismo, do mesmo jeito que conviver com mulheres – e até ser filho/a de uma! – não imuniza ninguém contra o machismo.
Na continuação, o episódio 6 também traz duas cenas bem interessantes. A primeira é quando o editor branco da revista Pastiche procura Sam para que, juntos, implantem a ideia genial (como nenhum preto pensou nisto antes!) que ele teve para acabar com o racismo na universidade. Lembrei-me imediatamente da ideia “genial” da equipe de marketing do Neymar, comprada por milhares de brasileiros brancos que, como ele, nunca haviam se dedicado a pensar ou estudar o assunto, de pagar mico tirando fotos comendo banana para acabar de vez com o racismo no futebol, usando a hashtag #Somostodosmacacos.

Não faço esta ligação com o futebol por acaso, mas por perceber que, no Brasil, assim como técnicos de futebol, temos técnicos em racismo aos milhares. A diferença é que pelo menos os técnicos de futebol gostam e acompanham o esporte, enquanto que os técnicos raciais aparecem apenas nos momentos em que um caso atinge a mídia. Sem conhecerem direito as regras do jogo, opinam sobre o que vale e o que não vale, atuando no ataque mas, na verdade, fazendo a própria defesa, numa atitude de negação. Não é raro vê-los se colocarem – ou a alguém bem próximo de si – no lugar do racista e querer negar que seja racismo aquilo que também faz parte deles mesmos. Afinal, há aquela pesquisa que aponta que os brasileiros pensam em si mesmos como uma ilha de democracia racial cercada de preconceitos por todos os lados.
A segunda cena é de uma garota branca, dançando para expressar sua dor e, com ela, acabar com o racismo no campus. “Ok, garota. Já pode acabar com seus 15 minutos de ’12 anos de escravidão'”, diz Sam, comparando-a ao personagem de Brad Pitt no filme de Steve McQueen. Para quem não se lembra, Brad Pitt entra em cena apenas para figurar como o salvador do escravizado Solomon Northup. A necessidade de um branco salvador-herói é bastante comum em materiais desenvolvidos por brancos sobre negros, mas também está presente na vida real. No Brasil alguém chegou a apelidar o fenômeno como “Síndrome de Princesa Isabel”, termo muito citado na internet recentemente, não só pela passagem do 13 de maio, mas também pelo caso envolvendo a professora Elika Takimoto.


Há muito mais em Dear White People, que merece ser visto e revisto até que se entendam todas as tiradas, as frases que parecem jogadas ali por acaso, a sutileza de algumas situações que nos são apresentadas. Há problemas com a série, claro, como o levantado por Murilo Araújo em sua análise no excelente canal Muro Pequeno, em relação ao único casal de lésbicas da série apresentar uma relação bastante confusa. Mas os acertos superam, em muito, as deficiências.
 Eles falam de si e entre si, de um modo que boa parte da audiência branca nunca teve a oportunidade de observar.
Fico pensando na polêmica causada apenas pelo teaser da série, que fez com que pessoas brancas promovessem um boicote à Netflix porque o seriado iria contribuir para o genocídio da população branca. Não creio que estivessem falando de modo literal, invocando o tal do racismo reverso, mas creio que deve ser a morte para algumas delas não se verem no centro de um seriado chamado “Dear White People”. Aqui, a centralidade é nos personagens negros, aos quais é dado tempo suficiente para se desenvolverem, cada qual a seu modo, e mostrarem, cada qual a seu modo também, como o racismo – sutil ou escancarado – afeta suas vidas. Eles falam de si e entre si, de um modo que boa parte da audiência branca nunca teve a oportunidade de observar.
Os personagens brancos, por sua vez, não são vilanizados, mas tratados como geralmente são os personagens negros: sem muita profundidade, mais ou menos caricatos, sem grande importância a não ser como acessórios de uma história que, definitivamente, não é sobre eles. Pergunto-me quando a televisão ou as produtoras brasileiras terão coragem de investir em um projeto como este. E desanimo ao ver que a nossa maior produtora de dramaturgia anuncia como novidade a criação de uma Casa de Roteiristas com uma equipe de criadores que mais se parece com o ministério do Temer. Não é a toa que vem perdendo audiência: as mesmas histórias, os mesmos pontos de vistas, as mesmas vozes que, quando tentam falar das e pelas minorias, no máximo, podem aspirar vir a ser como Tarantino.
Fonte: The Intercept

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